quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

O município é competente para legislar sobre o meio ambiente com a União e o Estado?

A série Parque do Ingá 50 anos: Preservar hoje para comemorar sempre tem como proposta apresentar informações relacionadas ao histórico e os desafios para o futuro dessa Unidade de Conservação que no ano do seu cinquentenário (2021) enfrenta grave problema de seca dos seus lagos. 

Os primeiros quatro episódios desta série compõem a descrição dos relatos feitos pelos palestrantes convidados para Reunião Pública: “Os lagos do Parque do Ingá estão secando. O que fazer?”. O evento em questão foi realizado no dia 29 de setembro de 2021, no Plenário da Câmara de Vereadores de Maringá, reunindo representantes do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente - COMDEMA, Comissão de Direito Ambiental da OAB Maringá, Sanepar e Secretaria de Meio Ambiente e Bem-Estar Animal de Maringá. A comunidade presente também participou com perguntas e considerações que enriqueceram o debate sobre a temática. 

O material será apresentado em episódios para destacar as contribuições de cada especialista. Neste segundo episódio intitulado O município é competente para legislar sobre o meio ambiente com a União e o Estado? o relato é de Marcos Bento Veshagem - Membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB Maringá; Representante do Conselho Municipal do Meio Ambiente - COMDEMA


Episódio 2: O município é competente para legislar sobre o meio ambiente com a União e o Estado?

"Diante de todas as questões relevantes que foram trazidas aqui hoje, o meu objetivo será analisar - do ponto de vista técnico-jurídico - a possibilidade de tramitação do Projeto de Lei Complementar n. 2057/2021, que tem como objetivo principal a proibição da instalação de poços tubulares profundos na área compreendida como "Zona de Amortecimento" da Unidade de Conservação Municipal Parque do Ingá.

Esta é uma reflexão específica com relação a esse PLC, mas, certamente, poderá influenciar outros instrumentos jurídicos, até mesmo o Plano Diretor, que está sob revisão.

Para iniciar, apresento o teor do Parecer Jurídico da PROJUR em relação ao PLC, pois, não sei se é do conhecimento de todos, mas, pelo menos em um primeiro momento, o referido projeto de lei foi considerado inconstitucional.

O primeiro fundamento utilizado seria a questão de ausência de “interesse local”. O segundo, que também gostaria de trazer, seria com relação à competência legislativa. Assim, o parecer da Casa foi no sentido de que, em um juízo de legalidade, o PLC seria inconstitucional.

Na sequência a gente pode abordar de uma forma um pouco mais profunda esses pontos, mas, a ideia é de que o Município não teria competência para legislar sobre recursos hídricos, já que a matéria seria de competência privativa da União, e também se afirmou que as águas superficiais e subterrâneas são bens da União, dos Estados e do Distrito Federal.

Não estou contestando de forma alguma essa parte específica do parecer da PROJUR da Casa, mas, acredito que nossa reflexão possa ir além dessa constatação de que não caberia ao Município instituir novas regras acerca da captação e extração de águas sob pena de interferir na atividade administrativa de outros entes federados.

Então eu trago essa tese fixada pelo STF para esclarecer alguns pontos aqui.


Marcos Bento Veshagem é membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB Maringá e do COMDEMA 

A matéria é bastante controversa, existem vários posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, mas, o STF afim de regulamentar a questão, dando interpretação para que seria o “interesse local”, fixou uma tese no sentido de que:

Tese 145: O município é competente para legislar sobre o meio ambiente com a União e o Estado, no limite do seu interesse local e desde que tal regramento seja harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados (art. 24, VI, c/c 30, I e II, da Constituição Federal).

E o que isso significa? Significa que eu respeitosamente discordo do vício de constitucionalidade apontado pela PROJUR, porque o que a gente tem que compreender/verificar, dentro do ordenamento jurídico, é se a norma que está sendo feita aqui em Maringá está adequada às demais questões que foram regulamentadas no nível estadual e federal.

E, no caso específico, o PLC trata especificamente da implementação do Plano de Manejo de uma unidade de conservação, que é o Parque do Ingá.

Em continuidade, quando a gente fala de competência, sem aprofundar de forma técnica, temos a competência material e a competência legislativa.

Sobre a competência material, a questão foi muito bem abordada no parecer emitido pelo COMDEMA e encaminhado à Câmara, sobre o PLC 2057/2021, que destaca a existência da Resolução n. 110/2021 do Conselho Estadual do Meio Ambiente – CEMA, não deixando dúvidas de que o município poderia sim licenciar, monitorar e fiscalizar a perfuração de poços tubulares.

Com relação à competência legislativa, que seria o objeto da nossa reflexão, quero ressaltar que dentro daquela ideia, ou melhor, daquele conceito de “interesse local” e interpretação da tese do STF, a regulamentação trazida pelo PLC está em consonância com nosso ordenamento jurídico, estando prevista na Constituição da República (art. 225, §1º, III), na Lei Federal n. 9.985/2000 (art. 27) e em Leis Municipais (Lei Orgânica do Município de Maringá; Lei Complementar 1.093/2017; Lei Ordinária 11.198/2020).

Analisando a Constituição da República, temos o art. 225, que fixa em um dos seus incisos que incumbe ao poder público criar unidades de conservação:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...] III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção.      

Regulamentando este aspecto no campo infraconstitucional, temos a Lei Federal n. 9.985/2000, que estabelece, fixa e regulamenta os sistemas nacionais das unidades de conservação, dispondo em seu art. 27 que:

Art. 27. As unidades de conservação devem dispor de um Plano de Manejo. [...] § 1º O Plano de Manejo deve abranger a área da unidade de conservação, sua zona de amortecimento e os corredores ecológicos, incluindo medidas com o fim de promover sua integração à vida econômica e social das comunidades vizinhas.

Questiona-se: o que estamos dizendo aqui? Pois bem, o legislador quando colocou esse ponto verificou a possibilidade da unidade de conservação eventualmente ser criada em um espaço que já estava habitado.

E como fazer adequação da unidade de conservação dentro do espaço já habitado? Criando a Zona de Amortecimento, exatamente para evitar que a unidade de conservação seja destruída ou que tenha algum dano ambiental.

Temos ainda regulamentação no âmbito estadual, podendo ser citados: Portaria IAP nº 263/1998, Portaria IAP nº 11/2012 e Portaria IAP nº 232/1998 (CADASTRO ESTADUAL DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E ÁREAS ESPECIALMENTE PROTEGIDAS – CEUC).

Por sua vez, no âmbito municipal, temos a Lei Orgânica do Município de Maringá; a Lei Complementar 1.093/2017; e a Lei Ordinária 11.198/2020, que cria a unidade de conservação do Parque do Ingá e inclui a necessidade criação do Plano de Manejo e da Zona de Amortecimento, documentos que precisam ser produzidos com participação da SEMA e COMDEMA.

Destaco o contido no art. 13 da Lei Complementar 1.093/2017:

Art. 13. O Poder Executivo criará, administrará e implantará unidades de conservação, visando a efetiva proteção da biodiversidade natural, especialmente as associações vegetais relevantes e remanescentes das formações florísticas originais, a perpetuação e disseminação da população faunística, manutenção de paisagens notáveis e outras de interesse cultural, ouvida a SEMA e o COMDEMA.


Parágrafo único. As áreas especialmente protegidas são consideradas patrimônio cultural, destinadas à proteção do ecossistema, à educação ambiental, à pesquisa científica e à recreação.

Então, por que eu trouxe todas essas leis? Para tentar dizer que aquela análise que foi feita em um primeiro momento pela Casa (sobre o PLC) e que trata somente da redação literal das competências materiais e legislativas dos entes federados, deixa de observar que existe na própria Constituição um tópico específico sobre as unidades de conservação.

E é sobre isso que o município eventualmente estaria legislando neste e em outros projetos.

Assim, no meu entendimento – e também das entidades que represento – o PLC não seria inconstitucional. Caso remanesça alguma dúvida, sem prejuízo, a gente pode buscar apoio das entidades como a OAB, o Ministério Público, o COMDEMA e assim viabilizar um parecer técnico conjunto que possa dar segurança para a eventual tramitação do projeto de lei, ou seja, que essa questão da competência legislativa não seja um impeditivo.

Caminhando para uma parte final, salienta-se que o parecer do COMDEMA encaminhado para Câmara destaca a importância da Zona de Amortecimento prevista na Lei Federal n.º 9.985/200, o qual, de acordo com o Plano de Manejo, teria um raio de 200 metros:

“Merece também ser destacado que o Plano de Manejo do Parque do Ingá, definiu no item 15.2 (fls. 382 da redação final) que zona de amortecimento é ‘entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar impactos negativos sobre a unidade’, descrevendo-a como um ‘Raio de 200m a contar do limite do cercamento do parque’”.

O mesmo parecer frisa que o Plano de Manejo ao citar:

“Os projetos de edifícios e demais obras, tanto de obras em andamento quanto edificações prontas, devem desconsiderar o uso de água de poços artesianos profundos”.

Diante de tudo isso, eu acredito que tenha ficado claro o posicionamento e a reflexão que gostaria de trazer, qual seja, de que não podemos simplesmente dizer que o Município não pode legislar sobre águas e encerrar a discussão.

Precisamos implementar o Plano de Manejo e existem fundamentos jurídicos que embasam a legitimidade e competência municipal para fazê-lo. Nós precisamos ir além. Precisamos ser claros e entender que o que realmente está em análise aqui, no meu entendimento, é o conflito entre dois direitos fundamentais.

De um lado, temos o direito fundamental da propriedade e, do outro, temos o direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Então, precisamos de dados técnicos para fundamentar esta questão, para encontrar soluções/alternativas, e diante do que prevê a legislação ambiental, entre o efetivo dano ambiental, muitas vezes irreparável, convido a todos os parlamentares e interessados presentes à reflexão, para que seja aplicado o princípio da precaução, ou seja, para que optem pela PRECAUÇÃO.

A gente não pode esquecer que Maringá é uma excelente cidade, reconhecida nacional e internacionalmente exatamente porque sempre teve uma ampla participação da sociedade civil.

Os lagos do Parque do Ingá estão secando e precisamos encontrar uma solução, este é o fato concreto.  

Como diria o jurista francês Georges Ripert, “quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito” e que eu quero dizer com isso, é que não podemos ignorar os fatos sociais e que, se nós queremos que Maringá caminhe para sustentabilidade, garantindo uma qualidade de vida para a geração presente e para as gerações futuras, há necessidade do Município atuar e a Câmara legislar, dando concretude a todos esses elementos".

👉Observação: O texto apresentado se refere a descrição da fala do referido palestrante durante a Reunião Pública: "Os lagos do Parque do Ingá estão secando. O que fazer?" Algumas adaptações foram necessárias, sem alterar o conteúdo da fala. Todo material foi submetido a autorização e aprovação pelos seus autores. O evento na íntegra pode ser conferido no Canal do YouTube da TV Câmara de Maringá https://youtu.be/0z2ZLtprW3A .


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