Maringá está gestando uma grande rede de solidariedade frente à pandemia do COVID-19. Digo gestando, pois os fatos e as medidas tomadas nos indicam o nível de envolvimento do poder público e da sociedade e vão demonstrando como a cidade se entrelaça, se comporta e se transforma ao mesmo tempo que deixa transparecer como as pessoas vão se arranjando e se articulando em redes, seja nas micro redes envolvendo familiares e pessoas mais próximas ou arranjos um pouco mais amplos envolvendo atividades institucionais e locais de trabalho. A princípio parece que todos estão no mesmo barco pois, do que se sabe até agora sobre o contágio pelo coronavírus, parece não haver distinção em relação a cor, classe social, gênero.
Mas, não haverá o que chamo
aqui de solidariedade se as pessoas em situação de rua não estiverem assistidas
por meio do fortalecimento das ações do poder público municipal, ou seja, de um
incremento nas intervenções frente à gravidade da situação que se aproxima.
Alguns analistas estão fazendo um prognóstico assustador para o Brasil que pode
alcançar uma quantidade
de mortes sem precedentes. Todavia, o perfil das vítimas certamente será composto
na sua maioria pelos mais pobres e mais carentes. E pobreza e carência são
características de um grande contingente de brasileiros que incluem as pessoas
em situação de rua. Todavia, a estas pessoas se associam ainda outras
vulnerabilidades, transformando-as num grupo completamente suscetível ao vírus,
pois muitos são idosos, metade está doente, não há como colocá-los em
quarentena na rua, vivem em grupos, circulam por muitos territórios da cidade,
se dirigem aos transeuntes todo o tempo, estão absoluta e completamente
expostos ao vírus. Somente o poder público pode reunir recursos e políticas de
diversos setores para responder, imediata e suficientemente, à tragédia que se
aproxima dessas pessoas.
O isolamento social
(voluntário) do máximo de pessoas é um cuidado que se pode encaminhar e exigir
para aqueles que cotidianamente não estão isolados; para aqueles que fazem
parte da sociedade, que estão inseridos nos agrupamentos sociais. A população
de rua, ao contrário, padece de um isolamento social cotidiano, oriundo do
rompimento dos vínculos com a família e com a sociedade. Um isolamento que gera
impactos desastrosos para ela, pois a invisibiliza e naturaliza sua condição,
praticamente tornando-a parte da paisagem da cidade. Isolamento é um privilégio
dos que estão incluídos.
Maringá não queria ver
estas pessoas, chegando um ex-prefeito a afirmar que não havia pessoas em
situação de rua na cidade e, em certo momento, alegando tal inexistência
devolveu recursos federais. O fato é que elas existem; querendo ou não vê-las,
estas pessoas estão desabrigadas por aí. São mais de 4 centenas conforme o
Observatório das Metrópoles demonstrou em 2019, com a 5ª. edição do Censo que
realiza anualmente desde 2015. Alguns dados da Pesquisa mostram que a precariedade
é o nome e o sobrenome das condições de vida dos “moradores de rua”. A média
dos cinco anos mostra que 36% dormem nas calçadas; 20% vivem na rua há mais de
9 anos; 35% têm entre 41 e 60 anos e 5% têm idade acima de 60 e são, na maior
parte dos casos, os que estão há mais tempo na rua, ao ponto de serem conhecidos
por seus nomes pela extraordinária Equipe de servidores do Centro POP; 46%
afirmam que têm dependência química; 30% não tem qualquer contato com os
familiares; 65% não recebem nenhum benefício social; 41% afirmam apresentar
algum problema de saúde e destes 67% não fazem tratamento.
Enfim, a solidariedade em
tempos de pandemia, deve ser construída em bases reais e pensada a partir das
enormes desigualdades sociais associadas às relações de trabalho e à
precariedade urbana. Por enquanto está sendo gestada, e precisa evoluir para a
ampliação dos espaços de inclusão, sendo imprescindível para isso ações do
poder público, a única forma de evitar que as ações voluntariosas de boa
vontade, no final acabem reforçando a discriminação e o preconceito contra as
pessoas mais vulneráveis. Ou, mais grave, que o vírus torne de fato invisíveis as
pessoas em situação de rua porque, elas não estarão mais lá.
Ana Lúcia
Rodrigues
Professora da Universidade
Estadual de Maringá, pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo
UEM/Maringá e coordenadora da pesquisa “Pessoas em situação de rua de Maringá: desconstruindo
a invisibilidade”.
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